quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Quarta da Leitura

Ciúmes


Comprou um buquê de flores, escreveu num cartãozinho "Lilian: me diga quando...", assinou - depois de pensar muito num bom nome para amante - "Renê" e mandou entregarem o buquê com o cartãozinho no seu próprio endereço.

Deu certo. Foi o Arthur quem recebeu as flores na porta. Disse:

- Flores para você.

Lilian, fingindo surpresa:

- Flores? Para mim?

- E um cartãozinho.

- Um cartãozinho?

- Posso abrir?

- Não! Deixa que eu...

Mas Artur já estava lendo o cartãozinho.

- Muito bem. Quem é Renê?

- René?

- "Lilian, diga quando". Assinado, Renê.

- Eu não tenho a menor...

- "Diga quando" o quê? Hein? Hein? E quem é esse Renê?

- Eu...

O tapa foi tão forte que Lilian caiu de costas no sofá. Quando se ergueu, estava sorrindo. O Artur sentia ciúmes. O Artur ainda a amava, afinal. O Artur ainda a amava! Paft. Novo tapa.

Do sofá, eufórica, Lilian gritou:

- É uma brincadeira! Fui eu que mandei as flores. Fui eu que escrevi o...

Não pode terminar porque o Artur começou a sufocá-la com uma almofada do sofá.

***

É preciso explicar que Lilian não só vivia com Artur há apenas seis meses, tempo insuficiente para se conhecer uma pessoa, como não entendia a raça dos homens. Homem não tem ciúmes porque ama. Ciúmes não é uma questão entre o homem e a pessoa que ama. Ou é, mas a pessoa que ele ama é ele mesmo. Ciúmes é sempre entre o homem e ele mesmo.

- Quem é esse Renê? Hein? Hein?

Súbito, o Artur parou de sufocá-la com a almofada. Levantou-se.

Tinha se dado conta de uma coisa. Disse:

- Eu sei quem é esse Renê. Eu conheço esse Renê!

A Lilian ainda tentou chamá-lo de volta.

- Não existe nenhum Renê! Fui eu que inventei!

Mas o Artur já tinha saído de casa, depois de passar no quarto e pegar o revólver da gaveta da mesinha de cabeceira.

***

Lilian passou o resto do dia rondando pela casa, nervosíssima. Quando ouviu o ruído da chave na fechadura, correu para a porta. O Artur entrou sem olhar para ela.

- Onde você estava? O que aconteceu?

- Artur não respondeu. Foi para o quarto trocar de roupa. Lilian foi atrás. Havia respingo de sangue na camisa do Artur. O tiro fora de perto. Ele não trouxera o revolver de volta. Provavelmente, o jogara em algum matagal. Lilian:

- O Renê do cartãozinho...

Artur tapou a sua boca com a mão. Disse:

- Não se fala mais nesse nome nesta casa. Nunca mais. Está ouvindo?

E depois:

- Esse aprendeu a não se meter com a mulher dos outros.

***

Naquela noite, nenhum dos dois dormiu. Lilian pensando "Renê, Renê... Quem é que eu conheço com esse nome? Quem é esse Renê, meu Deus? Ou quem era".

De madrugada, amaram-se loucamente. O Artur dizendo:

- Viu o que eu faço por você? Viu?

Era a primeira vez que se amavam assim em pelo menos três meses. Ele até a chamou outra vez de Lili.

***

Durante dias, Lilian procurou nos jornais uma notícia sobre a morte de Renê. Nada no noticiário policial. Nenhum registro de desaparecimento. Nada nos avisos fúnebres. Quem seria aquele Renê? No fim de mais seis meses, Artur anunciou que iria deixar Lilian.

- Não vai não - disse Lilian.

E acrescentou que, no momento em que ele saísse pela porta, ela telefonaria para a polícia. A polícia gostaria de saber do fim de um certo Renê...

- Você faria isso, Lili?

- Experimenta.

Artur ficou.

— Luís Fernando Veríssimo


*Crônica retirada da versão on-line do Jornal Estadão (estadão.com.br). Originalmente publica em 10/11/2013

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